domingo, 8 de janeiro de 2017

CAMINHAR, na leitura de W. J. Solha



DU BOIS OU NE PAS DU BOIS,
C´EST LÀ LA QUESTION

W. J. Solha

CAMINHAR é a primeira parte do livro POEMAS, de Pedro Du Bois, Projeto Passo Fundo 2016.
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Tenho resenhado livros, ultimamente, que me levaram a um processo que se pode chamar de decifração, decodificação. Fiz isso com vários contos de Everardo Norões que acabaram ganhando o prêmio Telecom do ano passado, grandes histórias – reais - sempre sob suas estórias, que as reduzem até o aparentemente simples.  Fiz isso, também,  com o mais recente INTERSECÇÕES, de Cleber Pacheco,  que – opostamente - de cara, mostra de que simples não tem nada.
Bem,
agora recebo o POEMAS, de Pedro Du Bois, e me sinto como quem pelo menos pensava ter traduzido a pedra de Roseta, o código genético,  e, de repente, dá de testa com a Pedra do Ingá.
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Apesar de “conhecer” a poesia anterior desse estranho gaúcho, de quem já produzi resenha com o sintomático título de ENIGMA DU BOIS, pensei que pudesse – depois de passar pelo teste da abertura – que se chama CAMINHAR - acelerar o passo, mas vi que isso não seria possível e que me exigiria muito, mas muito mais esforço mental  ( e tempo ), de modo que  - “Devagar com o andor”, eu me reprimo,  e – pés no chão, pois estou com meu próprio livro em andamento – faço agora com o sapateiro que, feliz depois de ver aceita uma observação que fizera sobre as sandálias de um retratado por Velásquez, arvorou-se em crítico de luzes e sombras da obra de arte, pelo que recebeu um severo
- Zapatero:  a tus sapatos!
Não vou nem tentar gastar sola agora, portanto, com os demais livros do POEMAS: fico, por enquanto, com suas primeiras vinte e uma páginas.
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OK.
Em  O ENIGMA DU BOIS eu aventara a hipótese, primeiro, de que seu processo de criação seria o mesmo do proclamado  pelo movimento DADA, em que se poderia recortar frases soltas de um jornal, metê-las num saco, sacudi-las  e juntá-las ao acaso. Vi, entretanto, que não se tratava disso, mas de algo na linha do FINNEGANS WAKE, em que uma intenção poderosa subsiste sob cada palavra. Meu inglês é o do ginásio, e me é impossível entender o que Joyce diz no primeiro parágrafo desse seu derradeiro livro, mas veja  se você  consegue:
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riverrum, past Eve and Adam´s, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs
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Tradução de Augusto de Campos:
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riocorrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos por um commodius vicus de recirculação devolta a Howth Castle Ecercanias.
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Não entendi. Daí que vou à versão de Donaldo Schüler:
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rolarrioanna e passa por Nossenhora d´Ohmem´s, roçando a praia, beirando ABahia, reconduz-nos por cominhos recorrentes de Vico ao de Howth Castelo Earredores.
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Está mais claro.... mas não faço ideia de por que o tradutor trocou o Adão e a Eva por Nossenhora d´Ohmem´s.
Bem.
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, segue essa recriação de linguagem, como se vê logo no começo do romance:
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Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. 
Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto.
Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade.
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Essas coisas sempre me levam ao italiano límpido de Dante ao começar La Divina Commedia dizendo que “Nel mezzo del cammin di nostra vita”, que a tradução de José Pedro Xavier Pinheiro transformou num simulacro do Hino Nacional:
- Da nossa vida, em meio da jornada....
Volto a Du Bois. No poema 18 dessa primeira parte de seu livro POEMAS, que é CAMINNHAR, ele diz que “Trancafia a palavra em signos”, “Comprime o significado”, pelo que me parece que podermos, em seu próprio texto, chegar ao seu sistema.
No poema 21, ele diz ( lembre-se de que o tema é o caminhar) :
“A luz que ilumina a intuição.
Onde coloca os pés.
Onde fixa os olhos. Descobre
o destino da paisagem e se diz
ciente da responsabilidade.”
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O que é que ele faz, então?:
“APAGA
A LUZ E APROVEITA
DA ESCURIDÃO
O POUCO”.
Esta, parece-me, é a sua poética.
Veja só o poema 32: ele  me lembra de imediato uma cena de  “Sobre Meninos e Lobos” – do Dennis Lehane, filme de Climt Eastwood, e também uma, igual, de “O Iluminado” - de Kubrick,  - mas minha memória vai bem mais longe, para um faroeste – filme ou história em quadrinhos – visto na infância:  o índio, percebendo-se seguido, para, vê que seus mocassins deixam rastros muito visíveis, anda para trás, pisando as próprias pegadas, apagando as já repassadas, até chegar a umas pedras, donde, correndo, parte pra nova trajetória. Eis o Du Bois, como se estivesse entre os que conviveram com os moicanos:
“Repisa passos
ao contrário
na direção oposta –
do seguimento: fica
sobre a terra conhecida.
-
 Onde o desconserto ocorre:
cessa a busca
no convencimento
da permanência.
-
 Apaga na trilha
o espaço ocupado
em cada passo.”
Ou seja.
Du Bois não quer ser lido por quem não “apaga/ a luz e aproveita/ da escuridão/ o pouco”. Por isso “faz da travessia / pesada cruz “ ( poema 1 ). E “ diferencia o acompanhante do intruso. / Distingue o cheiro a vista o tato” (  Poema 5 ).
Por que?
Whay? - como grita ao céu o Jesus Cristo Superstar, no Getsêmani:
Jesus Cristo.
Volto ao Poema 1:
“Premeditação: nasce em pecado
Faz da travessia
pesada cruz.
-
Sofre no aprendizado
a tragédia inerente
à sua condição. “
“Sofre no aprendizado”:
- I'm sad and tired.
Mas é bem Du Bois o final inesperado, agora bem estilo A Última Tentação de Cristo – romance de Kazantzakis, filme de Scorcese:
“Conforta saber da perdição
originada no momento sôfrego
e que corpos se entrelaçam.”
Viu aí? :
Sexo.
O tema volta no Poema 2:
“O animal acasalado
expulsa demônios de terras não aradas.
-
Vê e compreende a necessidade
do desejo.”
-
Palavras que se repetem nos versos desse CAMINHAR: Desejo, pecado, fome.  Ainda no Poema 2:
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“a fome atravessa
a terra onde se embrenha.”
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Isso prossegue no poema 3 ( e tudo agora começa a me parecer mais simples):
“Apressa o passo
a fome dirige o pecado.”
(...)
Não pensa o pecado
e o mal se acomoda
na sobrevivência.”
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Poema 4, terceto final:
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“Acorda e concebe a fome.
Caçador e caça.”
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O ENIGMA DU BOIS cresce no Poema 6:
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“Assusta o pássaro. O urro retorna
Em gritos. ASSUSTA RECONHECER O OUTRO
NA IGUALDADE.. A desigualdade
na aproximação em corpos cansados
das jornadas. SABE DA VIDA
O NECESSÁRIO À FUGA E AO SILÊNCIO.
O segundo passo predispõe a sequência.”
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Ele está nos contando uma história! 
Poema 7:
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 “Cessa a caminhada (...) (corpos / pedem contatos) Penetra /a carne e a recebe em vontade.” // “Há vida na repetição. Rompe o cordão / em desespero.”
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Este final é muito bom:
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“ O choro interrompe / a extinção da espécie”.
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Mas isso não basta. Lá adiante, nesse mesmo CAMINHAR ( do livro e da vida ), ele, no Poema 17,
“Mede palmos. Há medo. Receia
o encontro: advinha o que se esconde
no encontro.”
19:
(...)
“Seguir em frente significa
deixar o consentido)”
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Agora leia isto, do Poema 24, com atenção:
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“O amor relembrado / é dor continuada. (... ) A família constituída / com carinho. O AMOR /EMPAREDADO EM DESCENDÊNCIA / RESSOA ORDENS NÃO CUMPRIDAS”.
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O Poema 25, nessas circunstâncias, é poderoso:
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“Através da porta a madeira
assume o gesto do reencontro.
Volta. Está além do retorno
e tem a frigidez do corpo
desacompanhado.  O medo
impele a mão que toca
a madeira. A solidão ecoa
o passado. O FUTURO É O ESTRONDO
COM QUE A CHAVE É GIRADA.”
-
A chave. É a mesma que reaparece no Poema 41:
-
“Muitas vezes multiplica o trajeto” (...) JOGA A CHAVE / FORA E SE MANTÉM COMO HÓSPEDE.”
-
Bem, aí está.
Pode ser que eu esteja absolutamente certo, esteja absolutamente errado. Se você se sente à vontade, o livro tem seis outras partes como essa, vá em frente. A Pedra do Ingá – aqui, nas fuças da gente - não foi, ainda, decifrada.  





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