DU
BOIS – IMAGEM & REFLEXO – projeto Passo Fundo, 2018
Waldemar José Solha
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Os poemas do Du Bois me lembram fragmentos de pergaminhos ou papiros com textos
bíblicos perdidos, em que experts tentam completar versículos. Fui às resenhas
que fiz de outros livros seus e vi que iria me repetir, aqui, ao dizer que os
versos do amigo gaúcho têm algo dos contos de Everardo Norões, cujo EntreMoscas
me fascinou tanto que, em lugar de tentar interpretar seu livro como um todo,
fiz isso em um conto e outro, que me pareceu mais cativante. Deu resultado,
suponho, pois – pesquisando – descobri que em “Um Certo Goês”, por exemplo, o
inominado homem de Goa é Aquino de Bragança, que o encontro dele foi com Ítalo
Zappa – cifrado como “Calabrês, Barra do Piraí, nome de pátria” – e que o
endereço onde isso acontece, em Maputo, Moçambique, é o da Embaixada
Brasileira.
Bem, mas em Du Bois – parece-me - não existem pistas externas. Qualquer
investigação do que deixa de dizer em seus poemas é coisa pra psicanalista ou
exegeta – que invista numa exegese, análise detalhada do seu texto.
Pergunto, primeiro: por que o título IMAGEM & REFLEXO? “Faciamus
hominem ad imaginem et similitudinem mostram”? Não. O uso deste símbolo
“&”, conhecido como “e” comercial, remete a uma associação – e, no caso, há
uma, do poeta com sua tradutora Maria Du Bois, pois o livro é bilíngue. Mas
pode significar algo menos prosaico. O Paulo das epístolas diz que “Agora vemos
por espelho e em enigma, mas então – depois da morte, evidentemente – face a
face”. Como o Google nos torna eruditos poliglotas, lá vai: “Videmus nunc per
speculum in aenigmate: tunc autem facie ad faciem”. Embora não acredite que a
intenção do Du Bois tenha sido essa, a ligação... cabe. O título IMAGEM &
REFLEXO – não fossem as réplicas em inglês – bem que poderia ser ESPELHO E EM
ENIGMA. Veja como o poema PASSADO, pág. 9, por exemplo, não tem nada de
animador. Começa assim:
- Escavamos destroços/ retiramos camadas/ de terras e terras / sobre os séculos
// nós em busca de respostas / que não existem
Duas páginas depois, em (DES)IMPORTÂNCIAS, o autor é ainda mais deprimente:
enquanto “legamos conhecimentos/ ao futuro// impávidos descendentes / dos
deuses/ da ciência/ e da nossa verdade” ... o que acontece? “Na relativa
(des)importância/ insetos seguem/ voando ao redor das luzes/ onde se
multiplicam / sem vaidades.”
Insetos.
Desisto?
Não, porque na página 91, no poema FINAIS, Du Bois me tira as palavras da boca.
Não só sobre parar de tentar esclarecê-lo, mas de tentar esclarecer, de
tentar... qualquer coisa. É uma senhora série de versos enxutos até dizer
basta: das palavras, só os ossos.
- Parasse / de escrever // agora // parasse / de pensar // agora // parasse //
agora.
E isto, página 95:
- Tenho destino / certo / traçado a giz.
Vê? “certo”, mas “traçado a giz”. Cinco linhas mais abaixo:
- tenho o caminho petrificado.
Página 29, com uma lacuna, essa fácil de preencher:
- Tantas vezes fui embora / para sempre / como parar de fumar / nunca mais.
O encerramento cheio de ironia:
- amanhã irei embora / para sempre // e levarei os cigarros.
Esses votos de deixar velhos vícios, lembram os dos que prometem fazer
caminhadas diárias a partir do primeiro de ano, ou deixar de usar tantos
cartões de crédito, com a constatação, em seguida, de que não fez nada disso:
- A novidade nos desconforta / em haveres desconhecidos //
Pausa.
- até / termos certeza / de que o início / continua o nada.
Eu apelo pra Wikipédia:
Niilismo (do latim nihil, nada) é uma doutrina filosófica cuja principal
característica é uma visão cética radical em relação às interpretações da
realidade, que aniquila valores e convicções.
E, de fato, o poema FUTURO ( pág. 139 ) também é desolador:
- Adivinha o futuro / enquanto presente: pressente. (...) / nada sabe do futuro
/ nada sabe do seu futuro/ não se prepara para a morte
E veja isto: o poeta transforma angústia em arte, no verso seguinte, trocando
“morte”... por “marte”:
- o planeta marte / em seu curso natural / desabitado e inóspito // onde
repousam os rastros / do artefato futuro presente / em sua superfície.
Tudo perdido?
Não me parece. Veja, na página 137:
- alegóricas palavras / semeiam estrelas / nas entrelinhas.
Alegóricas! Isto é genial: em ONÇAS, página 55, de repente Du Bois repete Dante
no Inferno, onde o vate italiano se depara com “una lonza leggera ( ... ) di
pelo maculato” Eis a fábula da esperança:
- A onça sai entre / os arbustos / salta sobre mim // Pergunta / o que faço /na
beira do mato / na beira do rio // De paletó e gravata / e sapatos pretos de
verniz / não sei dizer / o que faço / na beira do mato / na beira do rio// Nada
respondo/ e a onça some entre as árvores
SOME ENTRE AS ÁRVORES! Como se visse.. a chegada do Virgílio, autor da ENEIDA,
ídolo de Dante, e que será, daí por diante, seu guia na “selva oscura”.
Por essas e outras, IMAGENS & REFLEXOS é um belo acréscimo do nosso amigo
gaúcho à poesia brasileira.