O SENHOR DAS ESTÁTUAS, DE PEDRO DU BOIS
Márcio
Almeida
Ao escrever “Saber de pedra – o
livro das estátuas” (1999), o professor doutor da UFMG Luís Alberto Brandão
Santos como que criou uma taxionomia para o “gênero” ensaístico por demais
incisiva e enriquecedora para o discernimento de livros similares. Segundo ele,
entre a tarefa da estátua está a de concentrar em si mesma “um estado de
alerta”, uma vez ser preciso saber “ser ela observada”, assim como ser também
“ignorada no seu papel no funcionamento do maquinário urbano “garantida pela
distração dos olhares em trânsito”; por ser ela “um anteparo para o exercício
da indiferença: é importante que esteja lá, despercebida, exatamente para que a
ação de não perceber ocorra.”
A estátua tem, portanto, que
enfrentar esse grande desafio, conforme acepção do mestre mineiro: “ser
presença absoluta, radicalmente constante, na mesma proporção em que é
ausência, coordenada nula para os sentidos.” Então Brandão Santos observa nas
estátuas a força de uma presença sagrada, quando paralisada “por uma revelação”;
quando “a nudez do corpo desperta polêmica”; quando a pose tem “a intenção de
gerar um efeito, seja o de uma situação extraordinária, seja o de uma cena
banal”; quando nela a água é “cristal recheado de movimento”; quando “as
estátuas são guardiãs da verdade, mas também avisos de que a justiça só é cega
se for muda”; quando, interagindo com o espaço urbano quer dizer que “a cidade
que não muda não tem passado”, donde a estátua ser “maleabilidade temporal.”
Além de ser síntese da vida, a
representatividade das estátuas permite uma leitura de um processo de
condensação de sentidos e de significações, pois é também o objeto de
estranhamento que se vai identificar geralmente como obra de arte, adquirindo
desse modo um caráter surpreendente e comportamento imprevisto para os olhares
de sua identificação, dando-se a revelar em sua imutabilidade e indiferença.
Contudo a estátua é também uma obra de arte e como tal ela é flagrada como o ar
dotado de vida. Neste caso, diria Bachelard, “uma estátua é tanto o ser humano
imobilizado pela morte como a pedra que quer nascer numa forma humana.” É
tamanha, às vezes, a animação, que chega a lembrar La vénus d´ille, de Prosper
Mérimée. Como faz lembrar Goethe quando diz em “Máximas e reflexões” que “as
pedras são mestres mudos. Atingem com o mutismo o observador.” Ou a aceitar ou
não a provocação de Guillevic, quando a faz em “Terraqué”: “Se um dia vires –
que uma pedra te sorri – irás dizê-lo?”
Pedro Du Bois sentiu-se provocado
pelo tema e produziu O Senhor das
Estátuas (Penalux, 2013), o mais consistente livro de sua vastíssima
produção poética. A partir da motivação da obra do escultor João Bez Batti, o
poeta generalizou reflexões alusivas à estátua, reunindo desde sua
materialidade à abstração do objeto.
Às vezes a síntese surpreende e vale
por todo o livro: “O exemplo personifica a coisa – afeita e da madeira a forma
– conformada no desbaste. – Lixa a peça – e a pinta – nas cores escolhidas. – A
coisa transcende a ideia – original do dono – e se assenhora. (IV)” De outra
feita o devaneio advém do metabolismo mineral com seu signo substancial a
culminar no “próprio sonho do fogo excessivo”: “Imenso os aspectos – atraídos
pelas mãos que criam a ilusão da vida. O metal tem olhos e ouvidos: não escuta
e não enxerga. – A mão sustenta a luva. – os pés contraem a terra. - Diz que
respira e oxida – Mãos recriam o fantasmagórico: escuta e enxerga. (XIV)”. De
vez que há uma confissão do poeta: “Estátuas dizem segredos – engessados em
acidentes (XXX). Para guardá-los, observa o poeta, o senhor das estátuas, como
um operário da beleza imóvel, “decifra o silêncio – estendido nos olhos
fechados e nas mãos postas (XXXII); “em todas as horas de todos os dias –
observa o detalhe da pedra – o granito áspero – o mármore em água – o metal – a
madeira retratada – [a sua própria] imobilidade do senhor diante do abismo (XXXIII)”.
E outra confissão do senhor das estátuas: “Busca na estátua o significado –
encravado pelo artífice: a dor – a
fertilidade – o coroamento – a desfaçatez – a guarda do corpo – decomposto em
tempo. – Rebuscada em sua esterilidade – a estátua traduz o despropósito – de
ser tomada como referência (L).” Por isso a conclusão que a estátua tira de si
mesma: “A estátua não se submete – em servir ao senhor: recusa – o serviço
incômodo – de ser movimento. – Não receia o castigo – de ser observada
cegamente – em toque de mãos (LV)”.
O senhor estatuário duboisiano é o
que “não se conforma no limite, no bloco desgastado em cortes e no lixar
recorrente”, mas o que “avança espaços – e se confronta com o inexistente”, o
que “contempla o pensamento – e paciente recolhe aparas – de amarras
desconfortáveis (XXXVI)”. O senhor das estátuas é o que “receia desconhecer na
afetação da pose a madeira corroída em cupins: pedra esvoaçante em lançamentos
concêntricos e o papel endurecido cola o refazer do sentido em perdida imagem
(XXXVII)”. Em nível do folclore, “o senhor contempla a proa embevecida – na
face encravada como promessa de travessia: a carranca reduz – o medo na
necessidade da partida (XXXIX)”. Às vezes o senhor das estátuas as recupera “em
enigmas indecifráveis”, quando “dispõe sobre as bases elementos concretos: ama
o paradoxo da frieza da pedra – e no metal deixa a sua marca (XLVIII)”.
Na concepção de Du Bois, “a estátua
representa a ação intencional – da sobrevivência – e da criação deletéria – de
outras vidas (LVII)”.
Do tema imóvel ao texto mobilizador,
O senhor das estátuas antepõe a
poesia como espaço do objeto da matéria pensada para servir de reflexão ao
“resultado da vida concretizada em atos confessados” (III), “memória e
apresentação – impropriedade: proximidade entre o objeto e o modelo – monólogo
entre a vida e a prisão em vida (XVIII)” – ao nada [que] é revisto no retorno –
e ao tudo [que] se desorienta no estado primitivo (XXI)”; à “ilusão degradada
em realidade” (XXIII”).
Bibliografia básica
BACHELARD, Gaston. A
terra e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
SANTOS, Luís Alberto
Brandão. Saber de pedra – o livro das estátuas. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
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